A janela, a cortina, o aviso e a dádiva**

Se mexeu na cama meio acordada, meio dormindo. Olhou em direção a janela e o sol quente, mesmo sendo ainda tão cedo, lhe atingiu em cheio o rosto e terminou o trabalho que o despertador tinha começado.

Tinha que comprar uma cortina pra janela, pensou. Pensava isso todas as manhãs. Nunca comprava a cortina.

Talvez se a vista que tivesse da janela do pequeno apartamento (falar pequeno apartamento é pleonasmo?) em que morava não fosse o muro enorme construído ao redor do que um dia seria um condomínio de luxo… Talvez se a alegria de dormir olhando o céu — ainda que fosse só uma pontinha dele — não lhe encantasse… Talvez não fossem essas coisas já teria comprado uma cortina.

Levantou. Olhou pela diminuta janela e viu o muro do futuro condomínio. Sim, futuro. O prédio ainda estava sendo construído, mas o muro enorme de concreto já havia sido feito. Bem perto de sua janela. Tão perto que era quase palpável a sensação de que aquele era (mais) um aviso pra que ela saísse dali.

Não deixava de ser curioso que o mesmo muro que a deixava protegida de olhares curiosos era também o lembrete de que ela, cada dia mais, se tornava uma intrusa.

Não que se mudar lhe incomodasse. Mudar de casa era uma constante na sua vida desde que podia se lembrar. O que lhe incomodava era perder aquela janela.

Uma janela onde dava pra ver um pedacinho do céu e para a qual não se precisava de cortina porque vizinhos bisbilhoteiros não existiam era uma dádiva.

** Este texto foi originalmente publicado em minha antiga conta no Medium, no dia 15 de junho de 2018.

5 respostas em “A janela, a cortina, o aviso e a dádiva**

Comentários

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.